Cura entre gerações: nota da Conferência Episcopal Francesa

NOTA DOUTRINAL N° 6 SOBRE A CURA DAS RAÍZES FAMILIARES POR MEIO DA EUCARISTIA.

Conferência Episcopal Francesa, Comissão Doutrinal.
Sexta-feira 19 de janeiro de 2007.

PREMISSA.

A pedido de diversos bispos interessados pela presente proposta nas suas dioceses, a Comissão doutrinal considerou os fundamentos dogmáticos e psicológicos de “A cura da árvore genealógica por meio da oferta eucarística”. Parece que esta prática, cujo exercício já busca de per si o empenho do ministério sacerdotal, se difunda nas dioceses da França, depois os Estados Unidos e o Canadá, graças à tradução de alguns livros de autores episcopais ou católicos. A Comissão doutrinal, após haver amplamente estudado a proposta, considerou indispensável a produção de um juízo doutrinal que una os resultados de duas ordens de conhecimento:

1°) enfoque psicológico, porque se trata de um ato de acusação da atual influência dos ancestrais sobre o equilíbrio psico-espiritual de tal sujeito cristão;

2°) enfoque dogmático, porque a doutrina do purgatório é aqui chamada em causa pela aplicação da oferta eucarística a algumas almas de pessoas objetivamente nocivas, segundo a teoria, aos seus descendente vivos.

Além do desejo de cura sobrenatural ou milagrosa que se exprime potentemente em tais práticas, até a resumir sozinho a convicção soteriológica de muitos fieis ─ às custas do tema da responsabilidade, do pecado e da santidade ─ pareceu aos bispos da Comissão Doutrinal que um deficit manifesto de escatologia na cultura da fé cristã contemporânea comportava especulações incertas sobre o que diz respeito ao destino dos defuntos e os “Lugares” ontológicos que os acolhem (por exemplo, a literatura fala de “almas prisioneiras” ou “almas errantes”). Juntamente com outros, a morte, a sobrevivência das almas, a hipótese da comunhão delas post mortem com os espíritos demoníacos, são os temas obsessivos de uma produção cinematográfica, histórias em quadrinhos ou literatura que alimentam a fantasia também dos cristãos deste tempo. Infelizmente não é só questão de fantasia mas é a esperança teologal que se mescla, às vezes perigosamente, com representações incompatíveis com a fé cristã. Não era responsabilidade do trabalho técnico e circunscrito desta nota n° 6 tratar todos os campos da escatologia. Se é verdade que “a natureza aborrece o vazio”, pareceu-nos mais verdadeiro que a inteligência da fé tinha, com maior razão, horror do vazio e que representações dúbias sempre prosperaram sobre os seus defeitos. O esforço desta reflexão, além do problema limitado que se deu como fim de esclarecer, seria ricamente recompensada se houvesse indicado aos leitores a urgência de relançar no povo de Deus as características e as linhas do mistério escatológico, assim como a Igreja recebeu do seu Senhor. A nossa nota é longa e argumentada. Para quem quer inicialmente ater-se às conclusões dos especialistas, eis os dois juízos que completam a parte Iª da nota, de teor psicológico, e a parte IIª, de teor dogmático. Colhemos aqui a ocasião para agradecer de coração tosos os especialistas que contribuíram com a Comissão Doutrinal para afrontar este problema.

Sentença da proposta do ponto de vista psicológico.

O enfoque chamado Cura das raízes familiares através da Eucaristia é, do ponto de vista científico da psicologia, um risco muito elevado. Esse se baseia em noções simplicistas de causalidade psíquica. O resultado provável é que se impeça um verdadeiro trabalho de desenvolvimento psíquico. O sujeito é inocente no envolvimento daquilo que lhe acontece. O conceito de inconsciente pessoal não se aplica mais. O fascínio exercido pelas hipóteses genealógicas, ou pelo mediador, pode impedir o doente de levar em consideração as outras dimensões do seu sofrimento. O sofrimento bio-psico-social dos crentes poderia ser identificado e com atenção acompanhado num quadro terapêutico de escuta. Uma escuta de qualidade consente de respeitar o ritmo das pessoas e ajudá-las a aclarar a parte espiritual e a parte bio-psico-social do seu sofrimento. Esse permite, se é o caso, de endereçá-las a ser atendidas por pessoas especializadas. Seria certamente útil expandir amplamente a formação à escuta metódica, porque o seu deficit orienta as pessoas à procura de soluções rápidas e exteriores a elas mesmas. Vice versa, a escuta permite o desenvolvimento da interioridade e da singularidade. Ajuda a gerenciar a dor de modo inteligente e responsável. A liberdade pessoal emerge de uma relação de palavra verdadeira. Longe de todo positivismo como de qualquer sobrenaturalismo, uma tal aproximação requer todavia virtudes espirituais: a modéstia e a paciência.

Sentença da proposta do ponto de vista dogmático.

Uma avaliação doutrinal pode estabelecer a sua consistência só sobre a objetividade de um documento e por isto a nossa análise escolheu restringir a sua perspectiva em torno às narrações e aos argumentos desenvolvidos no livro de P. Hampsch: A cura da árvore genealógica através da Eucaristia (1986 Goleta, Califórnia, Estados Unidos da América, trad. francesa 2002). A intenção aqui emersa aparecia em contraste com a doutrina católica do batismo, aquela do Purgatório e das indulgências, e enfim com a intenção, bem compreendida, que preside à caridade sem cálculo que devemos aos nossos irmãos defuntos, aplicando a oferta eucarística em favor deles. Além da idéia de solidariedade no pecado encontrou as suas provas entre as fontes vétero-testamentárias tomadas literalmente, em termos que não reconhecem, em tal âmbito, o desenvolvimento da revelação até o caso exemplar do cego de nascença do Evangelho de São João (Jo 9). É possível que as estruturas de pecado (“pecado social”) pesem fortemente sobre a santificação das pessoas como causalidade ou condicionamento. Quem ousaria afirmar o contrário? Que as almas dos defuntos ainda no purgatório possam causar dano de modo atual e decisivo a santidade espiritual dos seus descendentes e que, libertando a eles, se possa curar atualmente os outros, esta apareceria como uma nova verdade na Igreja Católica, mas sem suporte na Tradição. Portanto, não se pode nem reconhecer nem praticar.

Mons. Pierre-Marie CARRE, arcebispo de Albi,

Presidente da Comissão doutrinal

Cardial Philippe BARBARIN, arcebispo de Lion

Mons. Claude DAGENS, bispo de Angoulême

Mons. Jean-Paul JAMES, vescovo de Beauvais

Mons. Roland MINNERATH, arcebispo de Dijon

Mons. Albert-Marie de MONLEON, bispo de Meaux

INTRODUÇÃO.

Em muitos lugares na Igreja são propostas orações, encontros, liturgias para a cura espiritual. O objeto desta nota examina uma das formas de cura acessíveis aos batizados: a cura da árvore genealógica mediante a aplicação da oferta Eucarística. Com efeito, esta proposta específica empenha conceitos psicológicos e teológicos particulares, envolvendo a prática do “mais venerável sacramento” a Eucaristia, e, portanto, o exercício do ministério sacerdotal, ou ao menos a sua caução. Pela importância atribuída por esta prática ao peso psico-espiritual dos ancestrais, suscitou a análise de especialistas em psicologia e psiquiatria. Encontram-se na primeira parte suas avaliações sobre um fenômeno em crescimento, mesmo na sociedade civil. Pelo emprego que faz de noções dogmáticas bem inseridas na tradição (Purgatório/indulgência/oferta eucarística aplicada aos defuntos), ofereceu também espaço para a análise do teólogo. Isto formará a segunda parte desta nota. Suspeita-se que seja a compaixão que inspire a maior parte daqueles que realizaram o que é apresentado como um método e um “programa”. Nenhuma disposição da presente nota quer suspeitar da boa vontade deles. Compraz-se, ao contrário, pelo amor deles pela Eucaristia e a caridade deles para com os defuntos. Mas agora é justo dizer que, em ambos os níveis, a abordagem aqui discutido parecia em contraste com a justa compreensão da alma humana na sua situação natural (a psique), como na sua situação sobrenatural (a relação com Cristo).

PARTE I: PERÍCIA PSICOLÓGICA.

Entre as abordagens chamadas “cura espiritual”, há uma que é endereçada especificamente à árvore genealógica. A teoria da qual estas práticas recebem a sua legitimidade, seja psicológica que teológica, afirma que o atual sofrimento do sujeito seja a consequência dos erros ou lesões dos seus antepassados. Expressa nestes termos muito genéricos, a situação é um pouco inconcludente. A teoria propõe às pessoas de explorar as vidas daqueles que lhes precederam e rezar para serem libertos de heranças danosas. A Eucaristia, enquanto pode ser aplicada para o bem dos fiéis defuntos, vem utilizada como o lugar privilegiado desta oração por causa da sua eficiência julgada superior, de um ponto de vista católico, enquanto sacramental. Conhecer a história familiar, por diversas gerações, pode certamente produzir efeitos terapêuticos. O fato foi estudado por muitos autores a partir de Freud, mesmo se as causalidades benéficas desenvolvidas nestes processos permanecem bastante misteriosas, não são sempre reproduzíveis e, portanto, constituem o objeto de múltiplas explicações da parte dos cientistas. Neste momento de reflexão, nada nos impede de pensar que as sessões espirituais focalizadas sobre a “cura das raízes familiares “em alguns casos possam produzir efeitos terapêuticos interessantes. A literatura traduzida em francês dá um grande lugar às provas para o testemunho: ao olhar científico, é a recondução de tal efeito a tal causa que, sem querer negar o valor de atualidade do resultado e a honestidade da testemunha, confere à teoria o seu caráter aventuroso. Todavia, esta nota foi tida como necessária, pela razão que a literatura onde se argumenta, nestes campos delicados, não parecia aventurosa na única ordem da coerência científica: aos profissionais da psiquiatria e da psicoterapia consultados, esta abordagem da cura espiritual das raízes familiares através da Eucaristia, na prática e teórica mistura que organiza, parecia comportar perigos. Ainda uma vez não pomos em discussão a boa fé dos autores, nem aquela de todos os praticantes ─ os sacerdotes antes de tudo ─ inspirados no Evangelho quando operam para aliviar consciências num estado de dor. Nós exporemos brevemente toda crítica, sublinhando as suas consequências práticas.

1. Uma concepção redutiva da causalidade psíquica.

A abordagem que estamos estudando aqui, a cura das raízes familiares (CRF), reside em documentos baseados num conceito de transmissão psíquica entre indivíduos que parece de tipo muito simplicista e também mágico. Essa se baseia sobre as representações mais primitivas da causalidade patogênica. Podemos recordar: a perda da alma, em seguida de um trauma; a violação de um tabu; a bruxaria; a possessão demoníaca. Baseia-se também em algumas teorias dos últimos quatro séculos: o pecado como causa de doenças, a abordagem desenvolvida pelo médico alemão Stahl, no fim do XVII século; patogenicidade dos segredos de família, hipótese eziológica levantada pela primeira vez no XVIII século pelo famoso hipnotizador Puységur; as teorias da degeneração desenvolvidas no XIX século pelos médicos Morel e Magnan. Estas teorias são caracterizadas por uma lógica linear: um agente causal traz consigo uma conseqüência de modo sistemático, proporcional e reversível. A mesma causa produz sempre os mesmos efeitos e na mesma maneira. A remoção da causa elimina o efeito. Esta lógica linear se refere também a um fator causal exógeno, exceto o pecado. Em todos os casos, se joga uma lógica de vitimismo: a pessoa é vítima de um agente externo que rouba a sua alma, a pune, a enfeitiça, esconde-lhe a verdade, ou lhe comunica um patrimônio degradado. Ela é também uma vítima do seu pecado e daquele dos seus ancestrais. Estas teorias constroem um sujeito que não é o ator da sua vida. No máximo se podem identificar as forças que agem sobre ele e pedir a Deus para ser delas liberto. Tal visão de transmissão psíquica terá importantes consequências sobre o modo no qual o sujeito se percebe e se dirige na vida. Espiritualmente, promove sem dúvida um relacionamento com Deus assinalado pela submissão, pelas expectativas mágicas ou sobrenaturalísticas, em condições onde a consistência da natureza humana ─ a inteligência e a liberdade ─ è como vacante e suspensa, longe da doutrina católica da graça. Há mais de um século, aprendemos a reconhecer com precisão que a causalidade psíquica é muito mais complexa. Os estudos de Pierre Janet, Ey e Sigmund Freud, em particular, nos ajudaram a sair das concepções simplicistas e de tipo exógeno e vitimista. O ser humano não é concebido como uma tabula rasa sobre a qual viriam a imprimir-se diversas influências, compreendidas aquelas atávicas. O conceito de psique reflete a complexidade do ser humano, a sua unicidade e a sua subjetividade. A psique se forma desde o nascimento até a tarda adolescência. Constitui-se inscrevendo-se na experiência do corpo e nas relações. O sujeito é em interação, em particular com a mãe; sente emoções e bem cedo lhes interpreta. Essas não são impressas nele como um selo sobre a cera. Em resumo, a psique reelabora todas as experiências. Ela cria representações (chamadas também imago) daquilo que é um homem, uma mulher, o sexo, a morte, etc. Organiza estruturas, mecanismos de defesa, diante de situações difíceis, realizando compromissos entre o desejo e o medo. Neste contexto, o sofrimento mental não faz referência fora de si, mas dentro de si mesmo. A influência de fatores externos, como a família, é reconhecida. Todavia, não é absoluta. O processo de libertação pessoal retorna, portanto, ainda uma vez para conhecer e para mudar a psique mediante os seus meios, em base aos próprios recursos. Suposto que o sofrimento mental seja muito grande, a ajuda de um terapeuta especialista, que age num ambiente adequado, pode ser necessária. Esse porá em palavras ─ verbalizará ─ as profundas angústias, amolecerá mecanismos de defesa rígidos ao tomar consciência de imagens vinculantes, de renunciar a mentiras inconscientes e a desenvolver relações mais flexíveis com os outros. O sujeito acede assim à sua interioridade nos modos da natureza humana; insere-se num caminho de maturação que respeita o seu próprio ritmo.

2. Mecanismos de transmissão não definidos.

Os autores ligados à cura da árvore genealógica não descrevem jamais com clareza os mecanismos de transmissão psíquica. Refere-se, em estilo implícito, ao enfraquecimento da qualidade daquilo que é transmitido, numa ótica próxima das velhas teorias da degeneração. Na maioria das vezes, se evoca uma punição que pode estender-se às gerações futuras ou a influência de uma pessoa malvada, que continua além da morte. Estes mecanismos entram na convicção mais que no conhecimento ─ se pomos de lado os conhecimentos da fé estritamente ligados ao pecado original, do qual o Concílio Vaticano II deu, por sua vez, uma apresentação (Gaudium et spes, n° 13) na qual o psiquiatra não reconhece o homem numa atitude de vitimismo. Os mecanismos de transmissão psíquicos, mesmo se complexos, não são de ordem mágica. Esses foram amplamente estudados e são modelizados em teorias coerentes com a razão. Ofereceremos uma breve panorâmica, distinguindo a transmissão inconsciente, a transmissão não consciente e a transmissão manifesta.

A transmissão inconsciente.

Diz respeito aos mecanismos mais profundos através dos quais se constitui a psique do sujeito. Os genitores e os outros transmitem à criança aquilo que é mais sepulto em si mesmos. A criança integra, transforma este material sem se dar conta e constrói o fundamento da sua personalidade sobre tal base. Esta unidade fundamental não é acessível à história consciente nem a explorações sistemáticas. Baseia-se essencialmente sobre o mecanismo de identificação, “processo psicológico com o qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, no todo ou em parte, sobre o modelo dele. A personalidade se forma e se distingue por uma série de identificações”.

A transmissão relativa a questões de paternidade.

Os pais podem herdar problemas psicológicos mais ou menos graves, os mesmos ligados às interações com os seus pais. Esses podem ser guiados a utilizar a psique dos seus filhos para as próprias necessidades psicológicas. Façamos um exemplo: uma mulher que experimentou o incesto numa família caótica, se casa com um homem desestruturado: estabelecerão um estilo de relação incestuosa. Não há dúvida de que passem a agir sexualmente sobre os seus filhos. O trauma vivido na geração precedente e não tratado, provoca confusão entre a sexualidade e a ternura. Falam facilmente às crianças acerca da sua vida sexual e das suas fantasias. Perguntam aos seus filhos sobre suas amizades insinuando conotações sexuais. As crianças são, pois, invadidas por estímulos sexuais emanados pelos seus genitores. A criação da sua sexualidade e da sua afetividade é profundamente disturbada por isso, mas inconscientemente. A transmissão psíquica inconsciente é a essência da transmissão psíquica. É inacessível, por definição, a explorações conscientes e às tentativas de curas de tipo catártico ou reabilitantes. Está na própria fonte do psiquismo do sujeito.

A transmissão “desconhecida”: o exemplo dos segredos de família.

Como a transmissão mental inconsciente, essa não é imediatamente evidente. Todavia, não é profunda como esta última. Può essere spiegata più facilmente e interferisce ad un minore livello di profondità con la costituzione della psiche. Conserveremo i segreti a titolo illustrativo. Molte realtà possono rimanere veladas entre pais e filhos. O agente secreto patógeno aparece quando o conteúdo se refere aos elementos essenciais para a estrutura da criança (como, por exemplo, a identidade dos seus pais, a sua posição real na fraternidade, um trauma precoce …). A criança percebe um mal-estar difuso na sua origem. A questão é tão importante que ele dedica-lhe todas as suas energias por anos. Se ele não obtém os elementos que faltam, pode desenvolver grave desconforto psicológico ou uma doença mental. Todavia, seria exagerado dizer que um segredo pode sozinho, “tornar esquizofrênico”. A esquizofrenia é uma doença complexa, ligada tanto a fatores biológicos quanto a fatores ambientais. Podemos também levantar a questão de realidades familiares, hipotizada por I. Boszormenyi-Nagy, psiquiatra e pioneiro das terapias familiares, ou aquela dita do mito da família, um conceito introduzido em 1963 por Antônio Ferreira. Somos condicionados pelos segredos, da realidade e pelo nosso mito familiar, mas de maneira menos profunda da transmissão psíquica inconsciente. Todavia, não se pode aceder a estas dimensões da transmissão por meio da simples anamnese como o propõem os sustentadores das abordagens psico-genealógicos. Revelar o “desconhecido” não é, depois de tudo, um fim em si mesmo, e este desvelar não age, como muitas vezes se acreditou, ipso facto por eficácia terapêutica. O trabalho sobre o “desconhecido” pode acontecer só num processo terapêutico que compreende o tempo. É terapêutico só quando os elementos de compreensão emergem no momento em que a pessoa está pronta para acolher e no qual esses podem enriquecer o seu trabalho psíquico.

A transmissão manifesta.

Os nossos pais e ancestrais explicitamente nos transmitem os seus valores, e não menos os seus problemas de comportamento atuais. Estes elementos são facilmente individuáveis. Nós diremos algo sobre isso. Aqui os valores são transmitidos através do estilo de vida e o diálogo. Os comportamentos dos nossos genitores são ligados à história deles, à sua psique e nós interagimos com eles enquanto são vivos: daqui uma série de influências, tanto mais eficazes quanto mais se trata de comportamentos disfuncionais ou violentos. Esta transmissão manifesta, mesmo se mais individuável por definição, deve ser levada a sério. Às vezes é necessário redefinir as relações com os pais para não se expor excessivamente a interações negativas. O que acabamos de descrever não é um conhecimento exaustivo dos mecanismos de transmissão transgeracional. Vemos que podem ser pensados de modo racional e levar a ações terapêuticas reflexivas, que podem ser explicadas. Ao contrário, a refutação de uma abordagem científica, num âmbito assim delicado como o trabalho sobre a psique, poderia ser perigoso para as pessoas.

3. Os quatro riscos duma falsa medicina de almas.

Todos sabem que no registro da medicina biológica o perigo principal ao usar práticas de cura infundadas cientificamente, com uma consideração por demais parcial ou superficial de um distúrbio, de um sintoma, têm como resultado a ignorância geral sobre o processo e o médico não saberá agir sobre todo o corpo. Tal possível terapeuta deixa o paciente num processo de câncer que piora e que foge da sua ignorância médica. As práticas de cura da árvore genealógica apresentam riscos semelhantes na ordem do tratamento do sofrimento mental. Os homens de boa vontade, religiosos, sacerdotes, sob a razão sublime que o sacramento da Eucaristia pode tudo, encorajam algumas almas com esperanças sobrenaturais e as leis da psique humana, queridas pelo Criador, são atravessadas pela ignorância, ou contraditas pela presunção. Podemos resumir os riscos aqui sustentados em quatro principais.

O perigo do fascínio pelos nexos causais estabelecidos pelo genograma

Os trabalhos sobre o genograma são muito delicados. Os psicoterapeutas patenteados sabem que este instrumento pode trazer rapidamente à luz muitas informações importantes, dolorosas e às vezes trágicas sobre a história familiar da pessoa. Esta revelação levanta hipóteses causais muito pertinentes na aparência. Estas, por sua vez, levam o sujeito interessado a uma mudança radical na visão que tinha da sua família de origem, do seu posto na família, e da maior parte dos seus ancestrais. Esta importante reestruturação pode ser terapêutica se é feita de modo profissional e num número suficiente de sessões. Isso consente, portanto, um afastamento da família de origem, uma idealização de certas pessoas ou certas histórias, compreender o comportamento de alguns parentes, etc. Ao contrário, quando se dá de modo rápido e sem uma guia profissional tal modo pode ser danoso. A pessoa ficará profundamente chocada. Aquilo que ela havia construído da sua identidade e das suas raízes familiares é posto em discussão. É provável que essa passe através de uma verdadeira crise de identidade, até o colapso depressivo ou narcisístico. Se ela é entregue a si mesma depois deste choque, pode ser invadida por um pensamento incessante, na busca de uma nova coerência. De fato, as hipóteses causais levantadas pelo genograma são muitas vezes convincentes na aparência. Essas tendem a cegar o sujeito e a evitar o emergir de outros elementos. Estes sofrimentos são inúteis. Sabemos há tempo que a técnica catártica é muito ineficiente. Não é suficiente, como se diz, que “as coisas saiam” para ser delas libertados. É necessário, invés, que emerjam pouco a pouco, no ritmo da pessoa. Depois se devem coligar e dar-lhes um significado. O processo requer tempo. Ademais, não podemos contar só com a oração para realizar este trabalho psíquico.

O perigo de reduzir a multidimensionalidade da pessoa humana.

As dificuldades de uma pessoa podem ser ligadas à sua história familiar. Todavia, essas podem ser ligadas a muitos outros fatores. No campo familiar, o sujeito depende da estrutura (caótica, rígida ou funcional), da comunicação e da ética relacional da sua família. O ser humano é também condicionado pela sua psique, pelo seu corpo, pelo comportamento apreendido e pelas funções instrumentais (lógicas, linguísticas, etc.). A atenção sobre a causalidade trans-geracional, como concebida pela cura da árvore genealógica pode levar à ignorância de outras causalidades. Esta uni-dimensionalidade pode levar o sujeito a um beco sem saída. Uma pessoa pode sofrer por causa de uma doença psiquiátrica não tratada ou tratada mal, uma outra pode estar sofrendo por causa de interações em curso com os pais, etc. Sem uma prévia avaliação multidimensional, a ajuda proposta não pode afrontar a dimensão na qual se situará a necessidade. Entra-se então numa forma de furto: o religioso que intervém ─ inocência ou presunção? ─ usurpa o lugar de um terapeuta que daria uma resposta adequada ao problema.

O perigo de evitar um verdadeiro e próprio trabalho psíquico.

A cura da árvore genealógica fornece chaves de leitura rígidas. O espaço psíquico nas histórias e nos testemunhos apresentados por esta literatura é invadido por conceitos de pecado original e pecado pessoal, de diabo, e de influência dos espíritos. Não é questão de refutar a priori a possibilidade de cada uma destas hipóteses, mesmo preternaturais. Mas aqui o sistema explicativo é fechado sobre si mesmo e dificilmente admite hipóteses naturais ou apenas acidentais. Ademais, a pessoa é sempre posta em relação de exterioridade, respeito a si mesma: as suas dificuldade são ligadas aos seus ancestrais e os meios para ser liberta delas lhe virão da ajuda divina, não só no registro dos meios ordinários sobrenaturais, mas também nos registros mistos da graça miraculosa, do efeito carismático, e sobretudo da instrumentalização de um sacramento ─ a Eucaristia ─ empregado, por assim dizer, nos seus limites. Ambos os aspectos levam a pessoa a tomar distância de si mesma e este proceder é o oposto do trabalho psíquico que, invés, consiste no estar em sintonia com si mesmo de modo neutro e aberto. Trata-se de deixar emergir os elementos de compreensão e deixá-los associarem-se entre si num espaço de “play” interior. Este desenvolvimento consente uma gradual iluminação dos compromissos inconscientes da pessoa. Ela é conduzida a realizar a sua liberdade e responsabilidade. O “curto circuito” do trabalho psíquico tem o efeito de fazer perder às pessoas a capacidade de agir sobre si mesmas. Muitas vezes encontramos pessoas que sofrem de depressão ou neurose, que já seguiram várias sessões de cura, muito centradas sobre a árvore genealógica. O problema delas mudou pouco. Invés, desenvolveram um comportamento de exterioridade de si mesmas. Essas procuram incansavelmente a técnica que possa resolver o seu problema. A visão delas de fé e da causalidade psíquica, que suspende o valor divino da ordem natural criada, impede-lhes de aderir à psicoterapia clássica de tipo analítico. Presumivelmente estas pessoas têm inicialmente reservas sobre esta aproximação. Todavia, o discurso causal linear da cura lhes reforça nas suas suspeitas, enquanto seriam esperados num percurso impostado sobre a fé que vá na direção da verdade antropológica e da responsabilidade de uma criatura criada à imagem e semelhança de Deus.

O perigo relativo a quem intervém: abuso de poder e de fraude.

A ausência de uma base racional da cura a árvore genealógica põe aquele que a pratica, costumeiramente um sacerdote, numa posição de poder por causa dos meios sacramentais da Eucaristia e da Reconciliação. As teses sobre o efeito causado pelo atavismo são inverificáveis. O praticante se torna o único garantidor das próprias interpretações e intervenções. Assim a triangulação, a referência a uma teoria externa convalidada, não é mais possível. A relação se joga em dois, entre o praticante onipotente e a pessoa enfraquecida pelo seu sofrimento e as suas expectativas. As interpretações brilhantemente aparentes, não menos que a sua tempestividade, reforçam esta dupla relação de fascino e de submissão. A sedução em jogo é importante e não regulamentada porque o praticante aparece numa certeza radical. Ele fala de Deus ou “por” Deus e “prescreve” Deus. Muitas vezes ele utiliza técnicas de cura irracionais e confusas, misturando psicologia individual, a psicologia da família, psicologia de grupo, a espiritualidade e a liturgia. Qualquer posição de curante tem certamente um risco de onipotência e de desfrute dos pacientes. O terapeutas competentes e honestos usam modos específicos para prevenir e curar este risco. Citaremos quatro deles: em primeiro lugar, é de haver uma formação aprofundada em psicopatologia. É fundamental, quando se pretende tratar o sofrimento mental, conhecer a gênese do psiquismo e das suas mutações, assim como as várias doenças psiquiátricas. Este aprendizado é longo e complexo. Indica uma boa instrução e a forma correta com os pacientes, sob a supervisão de especialistas. Sem tal formação, podemos propor técnicas individuais a uma pessoa necessitada de curas substanciais e completas. Por exemplo, se podem ver esquizofrênicos suportados pelo trabalho transgeracional, que não são curados e esta abordagem poderia agravar o seu delírio. Um segundo ponto que garante a qualidade das cure psicológicas, que impede a fascinação ideológica, é aquele de ser formado por diversas abordagens psicoterapêuticos, sustentados por diversas teorias. Deste modo, se evita uma rígida adesão a uma visão do mundo. Adquire-se a capacidade de pôr em discussão aquilo que fazemos e de interrogar-se sobre a função do investimento de tal precisa teoria. No caso da GRF, seria oportuno refletir sobre a “fantasia de transmissão”. A transmissão psíquica é uma realidade, mas é também uma fantasia. Enquanto tal, a sua função é aquela de desobrigar o sujeito e de pôr à parte todo desafio na causa pessoal. In terzo luogo, la qualità degli interventi psicologici è garantita dal lavoro fatto dal praticante su se stesso. Ogni terapeuta, o colui coinvolto in relazioni di aiuto, compie questo lavoro per motivi inconsci, come la ricerca della gratificazione narcisistica o l’attuazione di una fantasia riposante. L’identificazione e l’analisi di questi elementi sono essenziali perché il terapeuta o il praticante religioso non utilizzino la persona per le proprie necessità psichiche. Infine, la qualità degli interventi psicologici è garantita dall’abituale confronto con diverse teorie, dall’apertura ai contributi di altri campi teorici, dallo sviluppo nella teoria e nella pratica. È consigliabile che questa apertura a guardare ai risultati esterni si traduca nel fatto di essere controllati.

Em conclusão.

A abordagem chamado de cura das raízes familiares através da Eucaristia é, do ponto de vista da psicologia científica, um risco muito elevado. Esse se baseia em noções simplicistas de causalidade psíquica. O resultado provável é que se impeça uma verdadeira obra de desenvolvimento psíquico. O sujeito é como desculpado do envolvimento em tudo aquilo que lhe acontece. O conceito de inconsciente pessoal não se aplica mais. O fascínio exercitado pelas hipóteses, também da parte de quem fala, pode impedir o doente de tomar em consideração as outras dimensões do seu sofrimento. O sofrimento bio-psico-social dos fiéis poderia ser identificado e com atenção acompanhado no contexto de escuta. Uma escuta de qualidade consente respeitar o ritmo das pessoas e ajuda-las a clarear a parte espiritual e a parte bio-psico-social do seu sofrimento. Esse permite depois de endereçá-los às apropriadas tomadas de responsabilidade. Seria certamente útil para ampliar a formação à escuta. Porque o seu deficit orienta as pessoas a procurar soluções rápidas e externas a si mesmas. Vice versa, a escuta permite o desenvolvimento da interioridade e da singularidade. Ajuda a gestir a dor de modo inteligente e responsável. A liberdade pessoal emerge dentro de uma relação de palavra verdadeira. Longe de tudo o positivismo como de qualquer sobrenaturalismo, uma tal abordagem requer todavia virtudes espirituais: a modéstia e a paciência.

PARTE II: PERÍCIA TEOLÓGICA.

Esta análise é posta nos termos dos critérios da teologia dogmática para dar uma avaliação daquelas que são chamadas práticas de cura da árvore genealógica, em particular através do uso da oferta da Missa aplicada aos defuntos. A variedade de tais práticas parece bastante grande, por isso a nossa análise escolheu confiar-se aos dados de um livro que parece constituir, na França, uma referência doutrinal sobre o argumento. Trata-se de: J. HAMPSCH, c.m.f., A cura das vossas raízes familiares, … uma solução divina para os problemas difíceis (sic) 1986-1989. Este livro pode depender de muitos outros, entre os quais aquele do Dr. McAll (episcopal, 1910-2001), mas o impacto da Eucaristia nestas práticas sugere a regulação da reflexão sobre a teologia católica da Missa e do purgatório.

1. De que coisa se trata exatamente?

Devemos antes procurar discernir a prática específica de práticas curativas que, por sua vez, tende a confundir muitos níveis, carismático, dos sacramentos, sacramental, para obter o mesmo efeito: um bem-estar das pessoas. A ideia principal é que muitas pessoas sofrem na sua consciência consequências dos pecados cometidos pelos seus ancestrais, e podem usar diversos meios para a cura espiritual para restabelecer o equilíbrio psíquico comprometido por culpas que não são suas. Este livro fala repetidamente dos meios de oração pessoal e comunitária, mas praticam também exorcismos, as orações de libertação (sem que seja conhecido se se trate de ação do exorcista com o mandato do bispo), a prática do sacramento da reconciliação, e, enfim, a aplicação da oferta da Missa pela árvore genealógica do sujeito, até quando a sua dor interior não será aliviada ou curada. Em todos os exercícios espirituais orientados à cura do homem interior, se deterá sobre esta prática limitada, com a exceção de recomendar que estes níveis sejam bem distintos e que em particular não haja alguma mistura de ações de exorcismo com a liturgia eucarística, de modo a não tornar aqui ao conceito de cura espiritual tomada em geral, e sobre as precauções que requer para praticá-la. A Congregação para a doutrina da fé produziu sobre este argumento um documento doutrinal muito preciso. A definição restrita da prática de qual se entende fazer a análise, consiste no modo de considerar a condição sobrenatural dos antepassados mortos e a relação desta situação (o purgatório/felicidade) à situação sobrenatural dos seus descendentes. Brevemente falando, a decisão teológica discutível que pensamos de examinar diz respeito a esta convicção fundamental que os antepassados sejam um trâmite necessário para a constituição de uma personalidade espiritual sadia para quem vive sobre a terra. Segundo a teoria em questão, a aplicação da oferta da Missa pela árvore genealógica seguramente procurará o inteiro acesso à felicidade eterna destas almas, seguindo o movimento autêntico de caridade que a tradição católica sempre aconselhou. Ademais, também os vivos que pedem a celebração de uma intenção de Missa, mirará a um efeito de ricochete, se queremos, de obter em retorno, uma melhora da própria situação sobrenatural, que seria gravemente ligada pelos pecados dos ancestrais. Não parece, entretanto, que esta noção de ricochete tenha da sua parte algum sustento na Tradição.

2. Elemenosi da demonstração.

Com efeito, o argumento principal do Pe. Hampsch, como dito pelo Dr. MacAll, é a constatação por experiência que tais ofertas de Missas aplicadas aos defuntos têm desnudado situações espirituais impedidas na pessoa da sua prole. Este livro, além disso, se compraz de citar muitas libertações visualizadas de modo mais concreto, também com efeitos milagrosos, durante a celebração da mesma Missa. Pode-se apenas ficar surpresos pelo fato que as celebrações anglicanas cuja validade não é conhecida entre os católicos, sejam tidas pelo Pe. Hampsch tão eficazes como as missas católicas. O Dr McAll cita ademais, em comparação ao Pe. Hampsch, outros fatos muito mais miraculosos, como aparições de antepassados durante a Missa. É muito difícil contestar frontalmente tais testemunhos sem violar a honestidade intelectual dos autores cuja boa vontade é evidente. Acrescenta-se à dificuldade de receber tais elementos de prova da parte da testemunha, a possibilidade metódica, nas zonas interessadas, de mesclar os registros de intervenção: seria surpreendente, por exemplo, uma pessoa que se sinta curada de tal dor interior, não tenha recebido alívio da própria participação na Eucaristia, ou no sacramento da Reconciliação ao qual se apresentou com todo o coração e invés se atribui à soltura do avô obtido com a aplicação da oferta. Como também examinaremos uma série de argumentos teológicos a serviço da tese. Deixaremos de lado aqui os outros argumentos científicos ou estatísticos, tomados no campo da genética ou da psicologia, também se a sua discriminação poderia remover muito da demonstração do Pe. Hampsch.

O desequilíbrio da prova exegética.

A grande parte das citações bíblicas que são tomadas como prova da transmissão da iniquidade como mal objetivo e herdado ─ se não do próprio pecado como culpa, como culpa subjetiva ─ são tiradas do Antigo Testamento. Em particular cita Ex 20,5-6: “Eu sou o teu Deus, um Deus ciumento que persegue a culpa dos pais nos filhos até a terceira e quarta geração”. Curiosamente se ignora (Hampsch, p. 37) o ensinamento de Ezequiel 18 da ruptura destas solidariedades atávicas reenviando a sua validade aos tempos da libertação escatológica. Em outras palavras, é remetido à diferença entre Êxodo 20 e Ezequiel 18 o valor de um desenvolvimento da revelação acerca do relacionamento entre Deus e a responsabilidade pessoal. É verdade que o mesmo Hampsch (p. 35) havia ignorado o texto mais claro do Novo Testamento em matéria, a história do cego de nascença em Jo. 9,2. A propósito deste texto, o autor não nega as palavras de Jesus (“Nem ele nem os seus pais pecaram”) e estranhamente, Hampsch, inverte a maciça verdade do episódio, o qual parece levar o fato da desabilidade a um assunto neutro em relação ao senso de culpa pessoal e, sobretudo, herdado, para designá-lo, em resumo, como uma verdade de exceção no curso presente da história da salvação: «Jesus mostrou-lhes [aos hebreus] que se enganavam generalizando esta conclusão» [ou seja, que a desabilidade vem sempre de um pecado herdado] (Ibidem. p. 35). O livro continua, portanto, a afirmar a verdade estimada mais frequente, se não geral, que Deus permite a transmissão das desgraças de geração em geração.

O desequilíbrio na aplicação da oferta eucarística pelas almas do purgatório.

Naturalmente, a nossa análise não pode não notar com gratidão os sinais aqui dados de um grande apego à doutrina tradicional da Igreja, ou seja, que as penas temporais do purgatório podem ser reduzidas ou anuladas para tais defuntos por meio dos méritos de Cristo e dos santos. A prática discutível da cura da árvore genealógica seria já absolvida das suas maiores desvantagens se devesse ter a consequência, entre os fiéis católicos, chamar a atenção para esta verdade de fé e para este gesto de fraterna caridade. Na realidade aqui se evidencia um equívoco muito fastidioso e um verdadeiro desequilíbrio doutrinal: as almas do Purgatório, somos disso confiantes na fé, são almas salvas no que toca o relacionamento da sua liberdade com o Senhor. É um mínimo de contrição dos pecados, no momento da morte, à imitação do bom ladrão, que lhes terá colocado “hoje com Jesus,” se não “no céu”, ao menos na condição de chegar lá certamente (Lc 23,43). Resta-lhes realizar uma purificação objetiva para a qual somos capazes de intervir com as nossas orações. Todos estarão de acordo que, em relação à hipótese do inferno, a situação sobrenatural delas é claramente da parte do Salvador e da salvação. Compreende-se, portanto, esta insistência do Pe. Hampsch e dos sustentadores da cura da árvore de Família, vendo-os como ancestrais objetivamente danosos para aquelas pessoas vivas, danosos e capazes de impedir, não na superfície ou na periferia, a saúde espiritual de uma pessoa vivente e capaz de fazer-lhe mal em profundidade, até a contradizer o bom propósito para com Cristo de uma pessoa batizada. Mormente, se pergunta este senso atávico de solidariedade que coisa impediria a um presumível ancestral no inferno de comunicar a sua rejeição do Salvador aos seus descendentes… Parece que estas práticas tornam a reduzir ao mínimo a potência da salvação e, sobretudo, sobrenatural do batismo de cada sujeito na sua imediata relação com Cristo.

3. Uma objeção: a relação de salvação com o Salvador é para todo batizado imediata dentro do corpo místico.

De todos os meios disponíveis às consciências para ajudá-las nos seus sofrimentos ─ alguns dos mencionados não são habituais ─ o autor não cita quase aquele decisivo, o meio inaugural que é o batismo, como se não houvesse bastante poder para libertar uma alma radicalmente (=”na raiz”), como se pudesse deixar em condições de morte espiritual, enquanto comunica a vida de Cristo ressuscitado, como se pudesse ainda abandoná-lo ao poder de Satanás, quando também os exorcismos têm o seu lugar, certamente secundário, na celebração da Páscoa do Senhor aplicada a todo sujeito. Deste ponto de vista é muito significativo que uma das poucas menções do batismo sob a pena de Pe. Hampsch (p. 62) fala só de “direitos de batismo”, antes que afirmar solidamente o poder da graça batismal: «Dar a vida de Deus às zonas sufocadas da sua árvore genealógica é simplesmente aplicar os nossos direitos batismais». A “Satisfação” (Garrigou-Lagrange) das penas do Purgatório obtém-lhes progressivamente e irreversivelmente uma extensão da vida divina em nome do próprio batismo, antes ainda que a nossa caridade seja envolvida com a “satisfação” das práticas de indulgência; ou, se pomos em dúvida o poder batismal, deveremos desesperar também da potência em nós própria da graça do nosso batismo, antes que as ofertas eucarísticas aplicadas à situação dos nossos ancestrais não venham compensar por rebote a falta de vida divina em nós mesmos. Ora, todas as lesões provocadas pela nossa herança têm a sua sede em nós, e é em nós que o Senhor pode curar todas juntas, suposto que o queira (cf 2 Cor 12,7-15). Como também é possível e desejável que os vivos façam dizer missas por si mesmos, quando se encontram a afrontar os limites objetivos da sua própria carne nas batalhas do Espírito Santo no profundo do seu espírito. Tem-se certamente razão de avaliar a força de condicionamento das “estruturas de pecado” (João Paulo II) entorno a uma pessoa livre criada à imagem e semelhança de Deus, mas o batismo é o sacramento da libertação total, de todas as estruturas de injustiça a partir da estrutura do pecado original. Aquilo que permanece dentro de nós de “Concupiscência” (“fomes peccati”), aquilo que resta da vetustade do ‘”homem velho”, serve só para avisar a pessoa livre e real que a graça trabalha em nós e não para fazer duvidar o “homem novo” da novidade de vencedor na Páscoa que ele revestiu.

O personalismo da causalidade sacramental.

O personalismo do Evangelho, assim bem apresentado nos encontros do Cristo joanino, demonstra a imediatez da relação salvífica mediante a humanidade do Verbo encarnado: «Ninguém te condenou? […] Nem eu te condeno. Vai e não peques mais» (Jo 8,10-11). A causalidade propriamente sacramental, a mais marcante da Nova Aliança, hoje sublinha na vida da Igreja esta verdade cardinal do Evangelho: “[Cristo] está presente com a sua virtude nos sacramentos, de modo que quando um batiza é Cristo mesmo que batiza”. Outras causalidades mais mediatas, pensamos às causalidades educativas e dispositivas, jogarão a seu modo e na sua medida entorno aos sacramentos ou para ajudar a construir a personalidade sobrenatural do sujeito e a reconhecer aos ancestrais uma posição de estafetas de heranças necessárias e negativas enquanto não se der uma purificação completa deles. Em todo caso, não somos capazes de dar um “programa de cura”, esta frase curiosa recorre sem cessar sob a pena de Pe. Hampsch para resumir a sua teoria em modo um pouco monopolístico, que deveria relegar o primado da relação imediata a Cristo em favor de rebotes improváveis. Ademais, arrisca-se de relegar o registro íntimo da liberdade pessoal ao benefício dúbio das causalidades de condicionamento, já estável no centro da vida da existência cristã. É melhor sem dúvida que a nossa época os avalie melhor. O centro de gravidade do Evangelho de Jesus Cristo é a redenção dos pecadores, mais que a cura dos doentes. O crucificado perdoa: a Ele não lhe importa como primeira coisa desculpar ou curar a saúde, mas é para a sua santidade que nos dirigimos para atingir a felicidade.

Em conclusão.

Uma avaliação doutrinal não pode estabelecer a sua consistência senão sobre a objetividade de um documento, e é por isto que a nossa análise escolheu estreitar a sua perspectiva em torno das narrações e dos argumentos desenvolvidos no livro de Pe. Hampsch. O centro da intenção aqui desenvolvida parecia em contraste com a doutrina católica do batismo, do Purgatório e das indulgências e enfim da intenção que preside na caridade sem interesse que devemos aos nossos irmãos defuntos, aplicando a oferta eucarística em benefício deles. Ademais, a idéia de solidariedade no pecado encontrou suas provas entre as fontes vétero-testamentárias levadas ao pé da letra, em termos que não reconhecem, em tal âmbito, o desenvolvimento da revelação até o caso exemplar do cego de nascença do Evangelho de São João. Que as estruturas de pecado (“pecado social”) pesem fortemente sobre a santificação do povo a título das causalidades de condicionamento é possível. Quem ousaria pretender o contrário? Que as almas dos mortos ainda no purgatório possam danejar de modo atual e decisivo à saúde espiritual dos seus descendentes, e que, libertando uns, se possa curar os outros, isto apareceria como uma nova verdade na Igreja católica e sem apoio na Tradição: essa não pode nem ser reconhecida nem porta em prática.

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