Defendemos São José, o homem justo!

Artigo do Monsenhor Rubens Zani, Delegado Coordenador da AIE – Secretaria Linguística Portuguesa. Diretor Espiritual do Portal.

Historicamente surgiram três hipóteses para explicar o sentido correto das palavras de Mateus 1,18-25, freqüentemente chamado a dúvida, mas melhor a dilema de São José – o que ele deveria fazer, visto que sua noiva Maria se encontrava gestante. Embora as primeiras duas hipóteses são muito mais comum, acredito firmemente na terceira. Vejamos os três.

1) Hipótese da suspeita de adultério: Quem segue esta hipótese também tem de presumir algo não realmente justificado pelas palavras do evangelho – a saber, presumir que São José não sabia que o filho de Maria vinha do Espírito Santo, e ainda presumir que São Mateus ao dizer “antes de habitarem juntos, achou-se que tinha concebido por virtude do Espírito Santo” (1:19) está nos confidenciando um segredo, que São José não sabia. Desde os primeiros séculos tinha certa popularidade esta hipótese, incluindo grandes nomes como Santo Agostinho, por um tempo ao menos Santo Ambrósio e talvez até Santo Crisóstomo.

Porém todos que favoreceram tal hipótese encontraram o problema como chamar São José um homem justo, um seguidor das leis, se pretendia separar-se de Maria em segredo – pois a lei obrigava denunciar a noiva pecadora! Respondem eles que José era justo mas misericordioso e não querendo acusá-la “se considerou acima da lei” dispensado de acusá-la! No texto evangélico não se vê sinal algum de tal conflito na cabeça de José. Não diz “sendo homem justo mas não a querendo expor a infâmia” (1:20), pelo contrário lemos “sendo homem justo e não querendo” – como se não havia conflito algum entre as duas coisas! É por ser homem justo, e não apesar de ser, que José pretendia guardar segredo.

Na verdade a lei ou a moral não exigia separar-se duma noiva ou esposa infiel – até a profecia de Oséias louva o marido que perdoa (Os 2:18-19, 21-2,25); querendo separar-se tinha que denunciar por que se separava, mas sendo um bom homem, podia aceitar casar-se e nada dizer!

E finalmente, se José pretendia terminar o noivado em segredo para ninguém saber de nada, seria um plano muito inepto – pois dentro de poucos meses o segredo estaria evidente para todos! Além destas considerações textuais contrárias a hipótese de adultério, tem considerações teológicas – se Deus fez questão de escolher uma mulher perfeita para cooperar no seu plano da encarnação, seria de estranhar se escolhesse para proteger a virgindade dela justamente um homem que ia logo duvidar dela! Neste ponto São Pedro Crisólogo comenta: “O esposo acusa a esposa de crime? Mas era ele a testemunha de sua inocência. Dizê-la culpada? Mas era ele a guarda da pureza dela. Sugerir adultério? Mas era ele mesmo quem afirmava a virgindade!”

Portanto, nem o texto ou contexto bíblico favorece, nem a teologia favorece a hipótese de adultério. Então porque falar mal do justo José desta maneira?

2) Hipótese de julgamento suspenso: Esta segunda opinião encontramos nos autores desde o tempo de São Jerônimo, pois ele não aceitava a suspeita de adultério. Nesta opinião, José descobre que Maria está gestante (como descobriu, não comentam), e não sabe como ficou assim. Estima tanto a ela que não pode duvidá-la, e, portanto, suspende o juízo e pretende guardar segredo. São Jerônimo escreve: “Como podia chamar José justo se ele escondeu a culpa de sua noiva? O que fala em defesa de Maria é precisamente o fato que José, sabendo da castidade dela e maravilhado com o que aconteceu, enterra em silêncio o fato cujo mistério não compreendia.” Muitos pregadores medievais seguiram São Jerônimo, tido como o maior exegeta. Um escreveu: “Ó inestimável tributo a Maria! José acreditou mais na castidade dela que no seio dela, na graça que na natureza! Acreditou ser mais possível uma mulher conceber sem homem do que Maria poder pecar.” (Conrado de Saxônia + 1279) Muitos até nossos tempos seguem São Jerônimo.

Mas a hipótese dele tem também problemas – se José é “justo” no sentido Bíblico -possuidor de todas as virtudes- e está convencido da inocência de Maria, também só podia entender que seu ato de deixá-la causaria muitas dificuldades para ela: gestante, sem mais um noivo nem marido! E José não tinha motivos justos para expô-la à isso, convencido como era da inocência dela.

Também esta teoria não esclarece porque José teria medo de recebê-la como esposa, tendo certeza que ela é inocente. Como escreveu Conrado (op.cit.) “Não teria receio senão em parte acreditasse” que era adultera! A justiça de José nesta hipótese seria uma justiça bem estranha!

3) Hipótese de temor reverencial: Ambas as hipóteses já dadas pressupõe que José não sabia que Maria concebeu pelo poder do Espírito Santo – mas não vemos nenhum motivo para tal suposição! Porque o evangelista nos diria algo que José não sabia? Sem os preconceitos criados por tantos séculos de pregadores, a inclinação natural seria tomar literalmente as palavras: “achou-se que tinha concebido por virtude do Espírito Santo” (Mt 1:19). Quer dizer, na mesma hora que soube que ela estava gestante igualmente soube que era por obra do Espírito Santo! Como comenta René Laurentin, Mateus em 1:18 “coloca o problema apresentado a José – não o simples fato que Maria estava gestante, mas a causa transcendental deste evento extraordinário, a saber, o Espírito Santo.” (Les Évangiles de l’Enfance) O Deus que escolheu uma mulher perfeita para ser a mãe do seu Filho, escolheria como marido dela alguém que não podia compartilhar seu segredo? Porque considerar José um estranho ao mistério inefável da Encarnação?

Se René Laurentin tem razão, e o texto evangélico favorece isso, como foi que José soube? Duas respostas lógicas são apresentadas (pois uma terceira, que já seria visível a gestação, não tem cabimento, uma vez que o nascimento de Jesus ainda estava muito longe [Maria ainda ia viajar para o sul, passar meses com sua prima Isabel, viajar de novo para Nazaré, e mais tarde ainda viajar até Belém quando em fim nasceria o filho]). As respostas:

1] Muitos, como Karl Rahner, acham o mais lógico que Maria teria contado, visto o amor que existia entre eles e a tremenda empatia que devia ter existido entre os dois colaboradores mais imediatos do mistério da Encarnação.

2] Mas também é muito plausível ter sido o Anjo que contou a José. Lembramos como Deus e os anjos tomam parte ativa em toda história da Encarnação – anunciando a Zacarias a concepção do precursor, revelando a Maria a mensagem, chamando os pastores das colinas, revelando a Simeão e Ana no templo. Naturalmente esperaríamos uma revelação também a José, o escolhido protetor de Maria e pai adotivo do Messias.

Esta terceira hipótese responde efetivamente a todos os problemas e objeções que os dois primeiros enfrentam sem solução. Embora a terceira posição tenha raízes fortes em tempos patrísticos, é mais hoje em dia que está encontrando apoio popular.

Supondo então que José sabia a origem do filho que Maria trazia em seu seio, como entender a frase “não a querendo expor à infâmia” [na mais nova versão Brasileira, “denunciá-la”] (Mt l:20)? É simplesmente uma falha do tradutor – pois no original Grego a palavra (δειγματἰσαι = deigmatisai, mostrar em publico) não fala coisa alguma de infâmia! A palavra apenas diz que não quis “expor” o segredo (Veja Eusébio de Cesaréia, nos escritos patrísticos gregos, sobre este ponto).

Mas então porque José pretende se afastar de Maria? Como comenta Laurentin (op.cit.): “O que José sabia, de acordo Mateus 1:18, é que este filho pertence tão somente a Deus. Justiça exige dele não procurar tomar como seu nem a prole santa que não era dele, nem esta esposa que pertencia a Deus. Portanto ia silenciosamente retirar-se para não colocar Maria numa situação embaraçosa. Deixou a solução para Deus, o autor do acontecimento. A história não da mais detalhes, porque nada importam para o entendimento.” Laurentin atribui assim a decisão de José de se afastar de Maria à justiça do José. Mas pode ser igualmente e corretamente atribuída à seu temor de Deus. Esta é a posição de muitos hoje, e tem defensores desde o tempo patrístico.

Talvez o primeiro grande defensor desta hipótese foi Eusébio de Cesaréia (+340) que declarou que José considerou Maria demais elevada para conviver com ela. São Basílio, o Grande (+379), dizia que José temia ser chamado marido da mulher que concebeu por obra do Espírito Santo. Atribuem a Orígenes o texto do ofício das leituras, lidos por muitos séculos na noite de Natal: “José era justo, e a Virgem era imaculada; mas quando ele queria se afastar dela, isto aconteceu pelo fato de reconhecer nela o poder de um milagre e um mistério vasto do qual ele se considerou indigno de se aproximar. Humilhando-se, portanto, diante de tão grande e inefável fenômeno, pretendeu se retirar, justamente como Pedro diante do Senhor ‘Afasta-se de mim, pois sou um pecador’, ou como o chefe que mandou um aviso a Jesus ‘Não sou digno que entres na minha casa’, ou como Isabel ‘De onde me é dada a graça que a mãe do meu senhor venha visitar-me?’”

São Bernardo repetia este argumento, invocando a autoridade dos Santos Padres, e citando também os paralelos com Pedro (Lc 5:8), o centurião (Mt 8:8) e Isabel (Lc 1:43). São Francisco de Sales cita São Bernardo ao defender esta terceira hipótese na 19ª de suas conferencias às Filhas da Visitação.

Santo Tomas de Aquino originalmente era defensor da primeira hipótese, mas depois, no Suplementum à Summa Theologiae argumenta que José teve “temor” de receber Maria como esposa, não pela suspeitava de fornicação mas por reverência à sua santidade.

Alfonso Salmerón, S.J., teólogo e perito no Concilio de Trento e exegeta de renome, vigorosamente defendeu esta terceira hipótese na simples base da filologia, do próprio texto evangélico no grego original.

Não podemos duvidar que a autoridade de Crisóstomo, Agostinho e outros criaram um preconceito – tanto que quando lêem as palavras de Mateus 1:20, pressupõem que ali é a primeira vez que José ficou sabendo da origem divina do filho de Maria. E infelizmente, esta pressuposição influenciou a versão daquela passagem nos vários vernáculos! “Qualquer versão,” escreve René Laurentin, “tem de respeitar as partículas operativas do Grego (γρ … δ = gar … de).” Na versão mais comum o gar é traduzido como pois “pois o que nela foi gerado…”, e o de que no Grego fica entre “ela dará a luz” e “um filho” simplesmente não é traduzido!

Em l966 A. Pelletier escreveu um artigo importante no qual ilustrou com numerosas citações do Novo Testamento o uso destas partículas operativas gar e de que apresentam primeiro uma objeção (gar), e depois uma afirmação (de) apesar da objeção. Nisto ele estava apenas confirmando argumentos gramáticos antes avançados por Léon-Dufour no seu artigo pioneiro sobre a anunciação a São José. Se-baseando nestes estudos, Laurentin traduz os versículos em questão como segue: “José, filho de Daví, não temas receber contigo Maria tua esposa, (gar) pois embora o que nela se gerou é obra do Espirito Santo, ela dará a luz (de) e ainda assim, ao filho tu porás o nome de Jesus…” Assim vemos que o anjo não está falando à José para corrigir alguma suspeita de adultério nem para acabar com alguma ignorância respeito a origem divina da gestação de Maria mas sim para confirmar que apesar do grande milagre (que aconteceu em Maria, fazendo José temer recebê-la), é a expressa vontade de Deus que José assume o rol de pai deste filho, e marido de Maria! (Pois naquele tempo e cultura, era direito somente do pai dar o nome ao filho [como vemos quando na circuncisão de João Batista as autoridades não aceitam a palavra de S. Isabel, e o pai, Zacarias tem de escrever na tábua “seu nome é João”]).

Já no século XVI Alfonso Salmerón propôs traduzir gar como “certamente”, e Léon Dufour a traduz como “sem duvida”, e atualmente Canon McHugh traduz a frase completa livremente assim “José, filho de Daví, não temais tomar Maria como sua esposa. Digo isto porque embora a criança que foi concebida pelo Espírito Santo, ela terá um filho a quem tu deves dar o nome Jesus.”

A conclusão é simplesmente que José ia se afastar de Maria por temer a Deus, nem usurpar uma posteridade que pertencia a Deus somente, e nem tomar para si uma esposa que Deus já “tomara” para si. Nesta terceira hipótese fazemos justiça a José numa maneira que nenhuma das outras hipóteses faz. José é justo, santo, bom porque reverencia a maravilha que Deus está fazendo em Maria, e recusa tomar para si mesmo aquilo para qual realmente não tem nenhum direito (a paternidade de Jesus), recusa isso é até receber ordens divinas pelo anjo. Quanta injustiça se tem feito a São José, e ao plano perfeito de Deus, nestes dois mil anos!

Numa nova versão brasileira lemos “abandoná-la”, no lugar de “afastar-se dela”, uma palavra tendenciosa, sugerindo que ela não prestava! Porém no Grego lemos “libertá-la”, ou seja, não exigir que Maria casasse com ele como prometido. [A palavra usada, (απολoυσαι = apolusai), é a mesma que legistas usam para “libertar” um suspeito quando for provada sua inocência.].

Nesta nova versão chamam José de marido, quando ainda era só noivo de Maria.

Também, por fim, colocam que José, acordando, “aceitou” Maria, como se antes tivesse a rejeitado! No grego nada disso, a palavra usada (παρέλαβεν = parelaben) simplesmente é “receber”, é o verbo normalmente usado para o noivo receber sua noiva ao casar-se com ela.

Assim, a nova versão, longe de corrigir os defeitos seculares, ainda acrescenta mudanças para fortalecer a opinião que duvida de S. José!

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